segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Pobreza no Feminino: uma ilha no centro da Ilha


O trabalho que agora se apresenta resulta do esforço de quatro pessoas: Assunção Bacanhim, Célia Pessegueiro, Elisa Seixas e Guida Vieira, que se juntaram para fazer uma reflexão sobre a forma como a pobreza afecta as mulheres madeirenses. E iniciamos roubando as palavras do nosso conterrâneo Herberto Helder:

“O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
Como éguas abertas, como sonoras
Corredoras magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
Grandiosos lenços brancos. (…).
Lenços vivos com suas patas abertas
Como magnólias
Correndo, lembradas, patas pela noite viva.
Levando. Lembrando. Correndo.”

Escolhemos trazer a este Congresso um retrato breve das nossas inquietações como mulheres feministas na Ilha. Como tal, afloraremos não o que se cumpriu, mas o que está por cumprir. O sub-título escolhido reflecte, de alguma forma, este incumprimento: a mulher madeirense é, muitas das vezes, uma ilha no centro de uma outra Ilha.

Não temos dúvidas em afirmar que a pobreza seja qual for a sua manifestação, constitui esse oceano que a aparta e a aprisiona nesta espécie de dupla insularidade. Sente, muitas das vezes, que está irremediavelmente só. Repetimos: não temos dúvidas em afirmar que a pobreza, seja qual for a sua manifestação, a par com o obscurantismo cultural e a luta pela defesa das necessidades básicas, afasta as mulheres da luta feminista. Acresce ainda que, paradoxalmente, o consumismo fácil que caracteriza os nossos tempos favorece todos os factores avessos à emancipação feminina.

Na Região Autónoma da Madeira esses factores são francamente visíveis, na medida em que existem múltiplas razões que vincadamente os explicam e perpetuam, quer no passado quer na actualidade. Enunciemos então, os mais gravosos:

No passado eram poucas as mulheres que trabalhavam fora de casa; as que escapavam a esta inevitabilidade, tinham rendimentos ainda muito baixos que provinham usualmente do bordado que faziam em casa, fruto de trabalho árduo até altas horas da noite à luz do candeeiro de petróleo. Estas mulheres, exploradas a todos os níveis mas sem qualquer participação na vida social, eram consideradas naturalmente inferiores com a missão primordial de cuidar da casa, do marido e dos filhos. Poucas eram as que podiam aspirar a uma vida diferente, já que só algumas tinham acesso à escolaridade obrigatória ou a bens culturais.

Em uma das conversas que promovemos em relação ao Congresso, dizia-nos o Professor Nelson Veríssimo que falta, na História da Madeira, a Mulher escrita – e portanto, a inscrição inequívoca do contributo feminino na História da Ilha. E alertou-nos para o perigo da história uma vez mais repetir-se – de as mulheres de hoje não transcenderem para amanhã as suas lutas muito suadas, na maioria das vezes a custos pessoais elevadíssimos.

No presente, apesar de uma notável transformação sobretudo ao nível das mentalidades – e graças a uma grande participação das mulheres, primeiramente na escola e depois no mercado de trabalho – assistimos ainda assim a um grande défice de participação e intervenção das mulheres no espaço público, muito por culpa do facto de a maioria trabalhar ainda nos sectores menos qualificados e, como tal, mal pagos – como por exemplo hotelaria e serviços; as mulheres constituem também a maioria dos pensionistas da Região, sujeitas a pensões de mera subsistência; a maioria, abandonada nos hospitais ou nas suas casas habitadas unicamente pelas mesmas, vive num completo abandono que não pode ser permitido em pleno século XXI.

Não poderíamos deixar de salientar que a violência doméstica continua a ser um flagelo suportado maioritariamente no silêncio dos lares, legitimado pela crença de que é natural que o homem possa descarregar as suas preocupações sobre a mulher. Esta crença fundamenta-se numa perpetuação de costumes ancestrais, em que as próprias mulheres interpretam, frequentemente, a agressão como manifesto de amor ou de preocupação. Muito há ainda a realizar no que diz respeito aos relacionamentos a dois, em que ainda se alimenta a noção de chefe de família, pedra angular do lar, tornando a mulher em assalariada sem salário, sujeito de muitos, de incontáveis deveres e muito poucos direitos. Salientemos também que são cada vez mais as mulheres que resistem e recusam este tipo de prática, optando corajosamente pela separação, suportando o peso da desaprovação das pessoas que constituem a organização social da localidade onde estão inseridas. A corroborar o que acabamos de afirmar, há registo de já no ano 2008, um homem ter morto a sua ex-mulher a tiro e alguns vizinhos o defenderem na comunicação social com os argumentos de que ele era uma boa pessoa e que obviamente o acto se justificaria com algo que ela certamente havia feito. Este constitui-se, certamente, como o nosso problema mais premente, como ilustram os dados da Presença Feminina, uma ONG dedicada a este problema, e que no ano transacto trabalhou com 379 mulheres agredidas, das quais 77 contactaram a organização pela primeira vez. De referir que no presente ano, foram atendidos 185 casos, dos quais 48 são novos.

Será também de assinalar o trabalho da religião nesta meada que agora desfiamos. Tradicionalmente, a Igreja tem um grande poder sobre a maioria destas mulheres, para quem os lugares “sagrados” representam, simultaneamente, um refúgio e uma alienação que as afasta de outras lutas. A este respeito, relembremos as palavras de Beauvoir, que nos diz que “Há uma justificação, uma compensação suprema que a sociedade sempre se esforçou por conceder à mulher: a religião. É preciso uma religião para as mulheres, como é preciso uma para o povo e exactamente pelas mesmas razões: quando condenam um sexo, uma classe, à imanência, é necessário oferecer-lhe a miragem da transcendência.” E a mulher madeirense continua metodicamente, embriagada por esta miragem da transcendência, a encher os bancos das igrejas, bem como os seus cofres; não esquecemos que ainda se cobra, em algumas paróquias, “a desobriga” pascal, uma espécie de indulgência fora de tempo. De salientar que uma instituição cuja organização reflecte uma clara exclusão da mulher dos cargos de decisão legitima e fomenta, em grande parte, a ausência da mulher nas decisões da organização social que também a ela diz respeito.

A pobreza financeira é também um problema maior. Muito se tem dito e escrito, sobre as supostas benesses fiscais concedidas à Ilha. Delas falam quem nunca teve que gerir o ordenado em função dos preços praticados sob a tirania da insularidade e das supostas despesas acrescidas no transporte. E o que é certo é que quando uma mulher está preocupada em contar os cêntimos até ao fim do mês para poder, pelo menos, comprar o mínimo para a sua familia não está aberta a outras questões que se lhe afiguram, no imediato, menos importantes; aliás, até considera ridículo que alguém lhe fale de outra coisa que não seja o que a preocupa: colocar comida na mesa.

Não é por acaso que muitas de nós, quando em contacto com estas mulheres, ouvimos algumas ofensas, tais como “se tivessem problemas como nós, não se preocupavam com essas tonterias de feminismos “.

Mulheres formadas e informadas apressam-se a afirmar que a luta pela emancipação já não se justifica, de que o feminismo está ultrapassado e de que é um disparate insistir nestas questões; de que, obviamente, devemos ser malucas ultrapassadas – ou a ultrapassar; e aqui surge então o velho chavão, repetido em forma de oração, de que certamente será a infelicidade que nos move nestas questões tão estapafúrdias.

É por tudo o que foi anteriormente enunciado que o conceito de pobreza não pode ser visto apenas do ponto de vista financeiro, embora tenha um grande peso para a evolução da mulher. É certo que ninguém se emancipa se não tiver acesso, primeiramente aos bens essenciais à sua sobrevivência, mas a pobreza de “espirito”, a mentalidade do deixa andar, o pretensiosismo, a ausência de comprometimento social, entre outros, são entraves para que as mulheres consigam dar maiores passos na sua emancipação.

Na Madeira, a nossa luta não tem sido, nem se afigura, fácil; aos inúmeros factores anteriormente explanados, acresce o facto de existir quem efectivamente concorde com as posições por nós defendidas; certo é que a maioria teme dar-lhes rosto, quer por medo dos estereótipos imediatamente associados, quer pela forte influência das diferentes formas de poder que não estão, de forma nenhuma, interessadas em que esta luta avance. Faz falta na Madeira um movimento permanente, resistente, que coloque na ordem do dia as questões femininas. Faz falta maior consciência social.

Urge que a mulher madeirense se torne objecto de reflexão e de preocupação pública; é imperativo que a mulher madeirense se pense publicamente e que não se deixe ensombrar pelos receios que a têm mantido arredada destas questões. Existem alguns exemplos mais recentes de que isto é possivel, mas para isso é necessária ajuda do movimento feminista nacional e da UMAR, porque a Madeira também é Portugal e porque o feminismo também tem que passar, obrigatoriamente, por nós.

3 comentários:

Sancho Gomes disse...

Naturalmente, um comentário não chega para rebater e discutir algumas das afirmações feitas. Escrevo apenas devido á V/ afirmação: "para quem os lugares “sagrados” representam, simultaneamente, um refúgio e uma alienação que as afasta de outras lutas".
É velho o truque de querer imputar às religiões a alienação para as questões sociais. Aliás, é um cliché já gasto e que me espanta seja evocado ainda. Porque, a ser rigoroso, se a religião é a alienação (o ópio do Povo, não é?) da mulher, é-o também do homem, logo da humanidade. Ou seja, a pretexto da defesa da igualdade de direitos, aparece-nos, uma vez mais, a faquinha na religião e consequentemente, na fé e na crença. O que me parece desonesto e completamente desnecessário, sendo mesmo contrapruducente: em nada ajuda à causa feministae desprestegia, porquanto afasta qualquer crente, seja homem ou mulher. E como me afasta a mim, afasta muitos outros, mulheres e fdeministas entre todos.

madeiranofeminino disse...

Esta é uma nossa muito velha divergência nossa, não é?
Colocas a questão de que se a religião é alienação para a mulher, porque não o é também para o homem? Mas já foi, meu caro. Mas o ideal de libertação - a cenoura em frente dos olhos - ainda é mais significativo para as mulheres do que para os homens. E maior prova disso? Quem foram os primeiros desertores dos bancos das igrejas? Assim que o homem constata que não precisa de Deus para se libertar, começa a abandonar os sues templos. Ora, sabemos como a emancipação feminina está a anos luz da realidade masculina. Por enquanto. Tem todo o peso cultural sobre ela.
Sancho: Sei que és crente e este é um assunto fracturante entre nós. Mas a religião, de onde me posiciono, é essencialmente uma construção cultural que respondeu sempre aos estereótipos de quem a delineou. Aqui não questiono a existência de Deus; questiono a construção das organizações religiosas, nomeadamente a que influenciou os nossos padrões culturais.

PS: Esta é a minha resposta ao teu lamento. As minhas companheiras certamente também terão algo a dizer.
Elisa

madeiranofeminino disse...

Sancho, uma provocaçãozita: Tão susceptível às nossas dúvidas quanto à Religião, ao ponto de considerares que tal afasta homens e mulheres crentes do feminismo...
E a desobriga pascal, não abala nenhumas estruturas? A César o que é de César... ;)

Elisa